sábado, 16 de abril de 2011

RELAÇÕES DO ESTADO E MERCADOS NA AMÉRIA LATINA



O desenvolvimento latino-americano das décadas de 1950 e 1960 concebe a função do Estado como necessária. Considera que, apesar da capacidade auto-reguladora, o mercado não é capaz de assegurar o desenvolvimento e solucionar os graves problemas econômico-sociais que surgiram no continente. Percebe-se que o mercado distorce as relações sociais e que tende, na situação latino-americana, ao estancamento do crescimento econômico.
A partir do anos de 1970, e com especial força durante os anos de 1980, surge uma crescente denúncia do Estado e seu papel regulador na sociedade moderna. Se nas décadas de 1950 e 1960 designava-se ao Estado uma função-chave no desenvolvimento econômico e social da sociedade, nas décadas de 1970 e 1980 o Estado é apontado como o grande culpado dos principais problemas que emergem. Cada vez mais é traçado um quadro negativo do Estado. Ele aparece como o grande culpado de tudo. Se não há desenvolvimento, a culpa é do Estado. Se há desemprego, a culpa também é do Estado. Se há destruição da natureza, os erros do Estado são os responsáveis. Ronald Reagan, em sua campanha eleitoral de 1980, resumiu essa atitude com uma frase: “Não temos problemas com o Estado, o Estado é o problema.”
Essa fixação no Estado como culpado de todos os males não é senão a outra face da fixação contrária, segundo a qual o mercado soluciona todos os problemas. Poderíamos inverter a expressão citada para mostrar seu significado: Não temos que solucionar problemas, o mercado é a solução de todos os problemas. Diante do Estado, identificado como o Mal, aparece o Bem: o mercado é considerado agora como instituição perfeita, cuja afirmação é suficiente para não ter problemas.
Essa negação maniqueísta do Estado revela um profundo estatismo ao reverso. Se se pretende definir o estatismo como uma atitude que acredita encontrar na ação do Estado a solução de todos os problemas, nesse estatismo ao reverso o vemos simplesmente invertido e transformado no culpado de tudo. O Estado continua sendo tudo, do que se conclui que a negação maniqueísta do Estado não transformou a atitude profundamente estatista em relação ao Estado.
Assim surgiu o antiestatismo metafísico das últimas décadas, que é outra face de uma afirmação total do mercado. Esse antiestatismo domina a discussão atual sobre o Estado e transformou-se em um leimotiv da visão do mundo no presente. Surgiu com as teorias neoliberais sobre a economia e a sociedade, e representa hoje uma espécie de senso comum da opinião pública do mundo inteiro. Manifesta-se, até mesmo, nos países socialistas e domina a maioria das instituições internacionais que tomam decisões políticas.
Mas não se trata simplesmente de uma ideologia das pessoas, pois são os Estados que assumem essa ideologia antiestatista e a promovem. Não se trata de um senso anarquista popular, como existiu em todos os tempos e que sonha com uma sociedade sem dominação, sem dinheiro e sem o Estado, e sim uma definição de uma estratégia estatal no âmbito dos próprios poderes públicos. São os presidentes, os parlamentos, os executivos das empresas, os bancos centrais, as entidades internacionais como o FMI e o Banco Mundial, os portadores da ideologia antiestatista. Aparecem as ditaduras de Segurança Nacional da América Latina, que legitimam o terrorismo de estado em nome dessa mesma ideologia. Aparecem verdadeiros totalitarismos, que, em nome do mercado total, propagam o desmantelamento do Estado e que justificam o terrorismo de estado em nome da pretensa necessidade do desaparecimento ou minimização deste. A ditadura de Pinochet no Chile foi um sistema antiestatista desse tipo; entretanto esse elemento antiestatista esteve presente igualmente nas ditaduras militares argentina e uruguaia, surgiu nos anos de 1980 no Brasil e atualmente vigora visivelmente em todas as sociedades da América Central.
Em nenhum dos casos essa política antiestatista diminuiu a atividade estatal, mas reestruturou o Estado. Aumentaram as forças representativas deste, até o ponto de o Estado deixar de cumprir as funções sociais e econômicas. Em nome da ideologia do antiestatismo, o Estado policial substitui o Estado social. A ideologia antiestatista serve como véu para esconder um aproveitamento sem limites do Estado por parte dos poderes econômicos internacionais e nacionais. Trata-se de uma tendência que começou com a onda de ditaduras de Segurança Nacional dos anos de 1970 na América Latina e que continua vigente hoje, apesar de todas as democratizações.
Às ditaduras de Segurança Nacional sucederam democracias de Segurança Nacional.
(Frans J. Hinkelammert, economista e cientista social, é especialista em assuntos da América Latina. Vive na Costa Rica e é autor de “As armas ideológicas da morte” e “Crítica da razão utópica” – editados no Brasil pelas Edições Paulinas).
(Parte de artigo intitulado “Nosso projeto de nova sociedade na América Latina”, publicado na revista Pasos – Costa Rica, 1991).

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