quinta-feira, 17 de março de 2011

A DANÇA DE BAUBÔ

Texto de J.C. Marçal - http://arsdiluvianfilosoficos.blogspot.com/



A introdução da Gaia Ciência de Nietzsche é, sem dúvida alguma, uma das mais maravilhosas, originais, instigantes e profundas – senão a maior – de todas as introduções já elaboradas pelas letras humanas até agora. Para bem da verdade, depois desta introdução, qualquer outra passou a soar demasiadamente desnecessária, canhestra e sem o alcance, sem a violência necessária a toda e qualquer introdução. E tudo isso apenas em umas poucas páginas: nada demais, apenas uma simples introdução.
Mas é aí que reside o poder da escrita e do pensamento de Nietzsche: sua síntese é o alcance maior do pensamento enquanto descoberta do seu lugar próprio. O enigma e o mistério inerentes da Natureza são respeitados, descansam no Olimpo particular da perenidade e do devir, tomados com carinho pelo filósofo que contempla do alto da montanha mais alta a planície deslumbrante do abismo que se espraia indefinidamente à sua frente. É uma mulher que esconde sua natureza e suas razões. Aqui, exclama e vaticina Nietzsche, só há um termo: “Talvez o seu nome, para empregar o grego, seja Baubô!... Ah, esses Gregos! Como sabiam do viver!”.
Eis o vento que dissipa a neve, e tudo é petulância, é guerra, escárnio próprio dos fortes, o som retumbante dos tambores de Zéfiro. Estamos, nós todos, muito acostumados com meias palavras, com aquele sentido já esperado, com a palavra morta, esqueletos e esqueletos arrojados pela intempérie e pela preguiça. Em Nietzsche, tudo é muito vivo, muito próximo, muito filosófico às avessas, tudo pulsa e grita exigindo seu lugar... e aí temos a dubiedade, a ambigüidade natural de todo pensamento, mas que jamais vacila, que não se permite – um segundo que seja – duvidar de si mesmo.
E assim, tomados que estamos pela dança furiosa de Baubô, iremos iniciar nosso discurso com uma ira toda sua, com uma profundidade toda sua e, o que talvez seja o mais importante, com uma serenidade que lhe é peculiar por ser ancestral... e nada mais ancestral do que a força! A Filosofia, restringindo-se a uma necessidade absurda de tornar-se ciência [e aqui devemos entender a ciência no seu alcance menor, ou seja, a cientificidade da prova, aquilo que é palpável por todos, logo a essência da plebe, do rústico e do comum; um discurso que diz, constrói e alimenta coisas úteis, é bem verdade, mas que não é em hipótese alguma universal em seu apelo primordial de referência geral] elaborou um mundo paralelo que deveria ser, de fato, um instrumento para seus vôos maiores.
Mas que tristeza terrível se apossou do espírito dos filósofos: sentiram-se atraídos imensamente pelo poder gravitacional do método que eles mesmos erigiram e se esqueceram que toda filosofia deve ser alimentada com sangue e que toda linguagem – por maior que seja o alcance de seu significante ou o poder de seu significado (mesmo no seio de toda relação possível)- nada mais é do que um solo e não a casa, o pátio e o alicerce de toda construção. O sangue é o alimento da vida, aquilo que mantém o esqueleto em pé e que traz para a Filosofia o que sempre lhe foi mais próprio: a experiência. Entretanto, domados docilmente por seus métodos e crenças, não há mais lugar na Filosofia para a experiência: o indivíduo deve se justificar a todo tempo perante o universal.
O particular de todo discurso só é levado a sério se sua funcionalidade final tiver como objetivo o universal. Não importa mais o que os homens realmente vivem, nem mesmo o que sente – palavra horrível para todo filósofo – já que tudo é posto num mosaico pré-fabricado em que tudo já deve estar previamente modelado, esperado, mensurado e reconhecido. Mas, dirá o leitor mais atento, não era exatamente o enigma, o mistério que tomavam parte na dança de Baubô? Eis a razão dos mitos, dos deuses, daquilo que nos mantém vivos: o desconhecido. Este funciona como o ir, o querer sempre do espírito e isso é a vida! A Filosofia, então e de modo muito costumeiro, torna-se um pensamento de mortos. Prove o que você está falando! Argumente! Como seria possível provar a existência da dor para alguém que jamais a vivenciou?
Deveríamos dizer: é assim e tal fato ocorre sobre tais condições. Aqui teríamos sempre que ter um número limitado de condições. Mais ai, espírito meu, que não te conformas com o finito e tendes vistas apenas para o mar infinito do universo! Como provar aquilo que ninguém tem ouvidos para ouvir, que nenhum lábio beijou, que nenhuma vista alcançou? Nunca senti saudades, diz o eremita. E isso já é uma mentira, posto que não podemos colocar como inalcançável aquilo que nomeamos. Se um espírito qualquer jamais houvesse experimentado a saudade – e toda possibilidade é o acaso do real – como lhe dizer o quê fundamental da saudade?
Os filósofos de hoje diriam que devemos perder muito tempo desvelando os meandros sutis da linguagem para que possamos emitir qualquer juízo verdadeiro. Verdade, ó doce palavra jamais encontrada: tudo flui no esforço único do ser em existir. E perderíamos uma vida, duas, três... tentando descobrir a verdade da linguagem, o seu alicerce, o seu fundamento que nada mais é do que o próprio ser, e o mesmo é o pensar. Pensar e ser, a existência que consome o mundo no seu presente que é devir. Melhor dizendo: ser, não-ser e devir, eis a tríade daquilo que é - mas será que eles se encontram? Será que há uma comunhão, uma identidade ou apenas o impuro, o diferente, o vivente opera aqui? Mesmo assim, tendo elaborado aqui uma verdade apenas nossa, não somos tão vaidosos a ponto de tê-la como o término ou o princípio de seja lá o que for. Ela é verdade para mim e aqui apenas a vivência me basta como prova.
O mundo se adequa sempre ao meu eu, sou eu quem o pensa – o hiato da distância é o hiato mesmo da falta da dança de Baubô! Mesmo na epoquê fenomenológica, onde a suspensão de tudo aquilo que me vem pelo mundo me conduz ao meu próprio reino – a origem, o Grund -, nada mais é do que uma variante daquele reino silencioso em que o ser do homem dormita em ação e potência eternas. Potência!, que palavra tão bela: poder, conhecer e agir.
Nos movimentos portentosos da dança de Baubô devemos sempre nos perguntar: estaremos prontos? É o momento, pois a todo instante a morte [a durée do tempo que revela o caráter finito do infinito] nos incumbe de realizarmos a potência em toda a sua dimensão original, em seu alcance único de fazer nos lembrar que nunca temos tempo. Daí o significado da sua dança: o eterno retorno do Mesmo como a realização da potência da vida. Eterno retorno que traduz um mito.
Assim como o mito do soldado Er no último livro da República de Platão, assim Nietzsche elabora um mito todo seu. Não se trata, assim penso, de acabar com a supremacia da subjetividade, realidade cosmológica ou um novo imperativo categórico. No mito, o que é mais interessante, é que só escutamos aquilo que queremos ouvir. A verdade, então, é uma criação nossa. Somos deuses e Baubô dança. A dança da potência da vida - a verdadeira arte da intensidade!

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