domingo, 29 de agosto de 2010

COMUNIDADE E SOCIEDADE

O termo comunidade, embora já empregue por Aristóteles como expressão duma totalidade de indivíduos ligados por laços sociais, só no século XIX, devido aos processos de desagregação das comunidades tradicionais, se elabora numa conceptualização mais alargada e aprofundada de comunidade, ainda que polissémica e susceptível de interpretações diferentes e até contrastantes.
Tal como, para os pensadores iluministas e racionalistas do século XVIII (Voltaire, Diderot, Rousseau), a ideia de contrato representava um dos conceitos centrais no sentido de extirpar todas as formas de vínculos feudais, corporativos e comunais, na formação da Sociologia como ciência, no século XIX, comunidade constituiu um dos conceitos chave para a compreensão e a explicação da sociedade tradicional e da sua transição para a sociedade moderna, repercutindo-se noutras áreas do saber: Filosofia, História e sobretudo Antropologia.
Um dos primeiros mentores do conceito de comunidade foi Tonnies, que estabelece pela primeira vez a distinção entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Gesellschaft), sendo uma definida em contraponto da outra. A comunidade - assente ora no território comum (casa, aldeia, região, nação), ora na partilha da mesma língua, crença, etnia, corporação eclesiástica ou profissional - representa uma entidade social de identidade e interconhecimento, onde os actores sociais são vistos no seu todo, onde se fundem as vontades e se entrelaçam as relações sociais primárias face a face, relações estas perpassadas de laços personalizados de intimidade e emoção, bem como de regras adstritas de coerção e controlo sociais. Já, porém, a sociedade, composta por associações de diversa índole, na sequência dos conceitos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, constitui um agregado social de base racional e voluntária, cuja adesão pressuporia um acto voluntário e livre dos indivíduos e cujas relações se definiriam como fragmentárias e segmentárias, impessoais e secundárias.
Vários têm sido os autores que analisaram o processo da transição da comunidade para a sociedade: desde o liberalismo individualista e utilitarista (1970, Mill, John Stuart - Principles of political economy. London: Penguin Books), passando pelos evolucionistas como Spencer, até aos funcionalistas como Durkheim, que, de modo análogo mas menos optimista, apresenta a distinção entre solidariedade mecânica, específica das sociedades tradicionais, e solidariedade orgânica, própria das sociedades modernas. Outros autores pretenderam designar com outros termos uma realidade semelhante: sociedade militar versus sociedade industrial (Spencer), sociedade de estatuto versus sociedade de contrato (Maine), ou, no campo da antropologia aplicada às sociedades camponesas, a distinção entre "sociedade parcial" como parte integrante da sociedade global envolvente (Kroeber) ou entre "pequena tradição" e "grande tradição" (Redfield). Embora em ópticas diferentes e não de modo tão dicotómico, poderíamos ainda associar a esta distinção, quer a contradição campo-cidade de Marx, quer a acção comunal presente em certas comunidades e instituições vinculativas, como a Igreja (Anstalt) versus a associação (Verein) (Weber).
A uma visão evolucionista e optimista por parte dos positivistas e evolucionistas opôs-se, já no século XIX, por um lado, o conservadorismo nostálgico e, por outro, o socialismo nas suas diversas versões. Assim, autores conservadores como Burke e Bonald (Nisbet), perante a previsível ordem e o progresso caótico proposto pelos positivistas e modernistas, reagiam negativamente e apelavam à restauração da comunidade corporativa e tradicional (família, Igreja, guildas), considerada primordial em relação quer ao individualismo liberal despersonalizado, quer ao centralismo estatal abafador, que só pelo filósofo conservador Hegel era idealisticamente assumido como a comunidade por excelência (communitas communitatum). Em regra, porém, os teóricos idealizadores da comunidade tradicional passam de lado as relações hierocráticas e paternalistas, autoritárias e autocráticas ou até despóticas, amiúde presentes nas comunidades tradicionais. Numa perspectiva diferente, são ainda de referir os socialistas utópicos (Proudhon) que propunham levar à prática o socialismo através da construção de comunidades de partilha de bens até aos defensores do socialismo científico, que, embora reconhecendo o carácter revolucionário da era burguesa face ao feudalismo, proclamavam a necessidade da superação do capitalismo através da implantação duma nova ordem socialista, o que implicava a abolição da propriedade privada. Em Portugal, as reflexões e trabalhos empíricos em torno do conceito de comunidade e diferenciadas estratégias dos grupos sociais têm sido levadas a cabo por vários autores, de que se destacam, em termos contrastantes, Dias (1984, 1964) versus O' Neill (1984), Portela (1986), Geraldes (1987), Polanah (1987), Sobral (1993), Wall (1998) e Silva (1998).

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